O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) agiu para segurar a fila do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e frear a alta de gastos com benefícios previdenciários e assistenciais.
Sob orientação da Casa Civil e do Ministério da Fazenda, o instituto usou o programa de enfrentamento à fila, que paga bônus aos servidores pela análise extra de requisitos, para priorizar processos de revisão de benefícios ou apuração de irregularidades no segundo semestre de 2024.
A ordem de preferência consta em funcionários do INSS apurados pela Folha via Lei de Acesso à Informação. A reportagem confirmada com três pessoas envolvidas nas tratativas que a priorização das revisões teve como objetivo desacelerar o avanço dos gastos no curto prazo. Um desses documentos afirma que as ações para reduzir as filas “precisaram de moderação energética dada a prevalência do cenário de restrição orçamentária”.
No período, a fila de espera inverteu a tendência de queda e escalou até chegar a 2 milhões de pedidos em dezembro. De lá para cá, o órgão ainda não conseguiu reverter o quadro: o dado mais recente indica um estoque de 2,6 milhões de requisitos.
Segundo os interlocutores, participaram de conversas sobre o tema representantes da Casa Civil e da Fazenda (incluindo seus respectivos secretários-executivos, Miriam Belchior e Dario Durigan), além de membros do INSS e dos ministérios da Previdência, do Planejamento e da Gestão.
A representação de benefícios gera uma economia no curto prazo, mas também deixa uma conta futura, pois é preciso pagar correção monetária e juros ao segurado.
O ex-ministro Carlos Lupi (Previdência), que comandou a pasta na época das mudanças, confirmou a priorização das revisões e contorno que a decisão causou uma crise entre técnicos do INSS, da Fazenda e da Casa Civil. Ele se disse incomodado com a medida. “Mas quando é uma decisão governamental, a gente acata, ou sai [do governo].”
Durante a apuração da reportagem, a Folha reuniu de um integrante da Fazenda, sob reserva, que a redução da fila não pode ser feita a qualquer custo e que o orçamento precisa ser respeitado. Esse interlocutor afirmou ainda que a questão não deveria ser politizada.
A regularização das concessões com eliminação das filas foi uma promessa de campanha de Lula.
A Folha capturou todos os órgãos envolvidos. O Ministério da Previdência Social respondeu, em nome do governo federal, dizendo que “é absolutamente infundada a ideia de que o governo tenha, a qualquer pretexto e por qualquer expediente, represado a concessão de benefícios”.
A nota diz ser “fantasiosa a tese” de que a contenção de benefícios traria efeitos sobre o desempenho fiscal, pois os benefícios, uma vez benefícios, são pagos de maneira retroativa aos dados da requisição.
O governo ainda mencionou que o tempo médio de espera para análise dos benefícios caiu de 66 dias em janeiro de 2023 para 44 dias em maio deste ano. Esse posicionamento ignora, no entanto, o fato de que esse dado chegou a ficar abaixo dos 40 dias no segundo semestre de 2024, subindo após as mudanças no programa de combate à fila.
A nota diz também que “fatores absolutamente externos ao controle e ao desejo do governo”, como o atraso na votação do Orçamento de 2025 e a interrupção temporária dos bônus no começo deste ano, pesaram para frear uma melhoria mais acentuada. E afirma que “as ações de combate à fraude são uma obrigação contínua e corriqueira do INSS”.
O Planejamento disse, em resposta avulsa, que “eventual restrição orçamentária nunca foi definida para o pagamento de benefícios no prazo regulamentar e que são obrigatórias por lei”.
Essa não é a primeira vez que a fila do INSS é represada para conter o avanço de despesas públicas.
Prática semelhante foi adotada no governo de Jair Bolsonaro (PL). Apenas no final de 2022, o INSS acelerou as concessões e então impediu parte da fila, sob reclamações do Ministério da Economia, que precisavau pedir respaldo ao TCU (Tribunal de Contas da União) para pagar as despesas adicionais com um crédito extraordinário (reservado apenas para situações urgentes e imprevisíveis).
Sob Lula, o uso do programa de combate à fila para priorizar revisões começou em junho de 2024. Um primeiro ofício expedido pelo INSS anterior que, a partir de 1º de julho de 2024, as chamadas filas extraordinárias deveriam ser abastecidas apenas com tarefas de apuração de irregularidade no âmbito do MOB (Monitoramento Operacional de Benefícios).
Pouco tempo depois, em 16 de julho, o INSS alterou a orientação e deu prioridade às filas de reconhecimento inicial de direitos, devido à “situação extraordinária de acréscimo dos estoques nos últimos meses”.
Após essa revisão, a Casa Civil, a Previdência e a Gestão reuniram em 13 de agosto uma portaria conjunta para prorrogar o programa de enfrentamento à fila e incluir uma ordem para priorizar as reavaliações de benefícios por incapacidade. Segundo um técnico da área econômica, o direito foi estender os bônus aos servidores tendo as revisões como contrapartida.
Duas pessoas ouvidas pela reportagem relataram que, em uma reunião ocorrida entre julho e agosto de 2024, membros da equipe econômica afirmaram que o prazo de concessão dos benefícios havia caído demais, inclusive abaixo do limite legal de 45 dias, e que era preciso fazer uma gestão da fila para haver um equilíbrio com o Orçamento. Em julho, o prazo médio de atendimento era de 34 dias.
Àquela altura do ano, o governo precisará congelar R$ 15 bilhões em despesas livres para cumprir as regras fiscais, a maior parte disso para compensar o aumento nos gastos com Previdência e BPC (Benefício de Prestação Continuada), decorrente da redução das filas. O bloqueio só não foi maior porque os números já incorporavam uma expectativa de economia com a revisão, que depois não se concretizou.
Em 27 de agosto, um novo ofício do INSS determinou que as filas extraordinárias fossem alimentadas apenas com processos de apuração de irregularidade, reavaliação do BPC e revisão de ofício. Em 3, 17 e 27 de setembro, outros atos incluíram na lista alguns tipos de requisitos de forma alternada, mas sempre mantendo os três itens da revisão no topo das prioridades.
Os ofícios foram contratados pelo então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e o diretor de Benefícios, Vanderlei Barbosa dos Santos. Em abril deste ano, eles foram retirados após a Polícia Federal deflagrar a operação Sem Desconto, que investiga fraudes em descontos associativos de beneficiários do INSS. Procurado por meio de sua defesa, Stefanutto não se manifestou. A reportagem não conseguiu contato com Santos.
A nota técnica que subsidiou o ofício de 17 de setembro de ontem que o instituto vinha adotando medidas para reduzir as filas. “As ações precisaram de moderação energética dada a prevalência do cenário de restrição orçamentária e a priorização dos serviços ligados à apuração de reclamações de irregularidade”, diz o texto.
Segundo o relato de três pessoas envolvidas, o mês de setembro de 2024 foi quando a pressão se intensificou. Embora não houvesse disposição expressa ao uso do bônus para analisar requisitos de benefício, havia um comando claro para priorizar revisões.
Naquele mês, o então presidente do INSS deslocou 150 novos servidores para as tarefas de revisão e apuração de irregularidades.
As mudanças enfrentaram resistências dentro do INSS, mas em outubro a mudança de rumo já estava consolidada. Em novembro e dezembro, o número de benefícios apoiados ficou abaixo da contribuição em iguais meses de 2023. Já o tempo médio de concessão do benefício terminou o ano em alto (42 dias) e subiu no início de 2025.
Dos benefícios revisados pelo INSS, cerca de 50% foram considerados indevidos. Ainda assim, a economia obtida (R$ 2,4 bilhões) frustrou as expectativas iniciais da equipe econômica.
No fim de fevereiro de 2025, diante da repercussão negativa do aumento da fila, membros do governo discutiram soluções. O programa de enfrentamento à fila, porém, só foi retomado em 16 de abril, após a aprovação do Orçamento deste ano pelo Congresso Nacional. Naquele mês, o estoque de processos teve a primeira queda desde junho do ano passado.