O terceiro ano do atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem sendo marcado pelo maior acúmulo de vetos presidenciais a projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional. Um desses vetos, no entanto, tem impacto direto na saúde e no bem-estar de milhares de crianças brasileiras.
O Projeto de Lei 6064/2023, de autoria da deputada federal Mara Gabrilli (PSDB-SP), prevê o pagamento de uma indenização de R$ 50 mil, além de uma pensão mensal de R$ 7.786,02 para pessoas com microcefalia e Síndrome de Guillain-Barré, causadas pelo vírus da zika. O projeto foi vetado pelo presidente em janeiro deste ano. Como alternativa, o governo editou uma medida provisória que concede uma parcela única de R$ 60 mil, mas somente para crianças nascidas entre 2015 e 2024.
Para Raniele Nascimento, presidente da ONG Abraço a Microcefalia, o valor definido pela medida provisória está longe de atender às necessidades das famílias. A organização foi fundada em 2016 diante da ausência de uma rede de apoio adequada. Começou com 10 famílias e, atualmente, acompanha 340 em todo o Brasil.
“O que impacta a vida das famílias é o fato de as crianças terem nascido com microcefalia provocada pelo zika vírus. As sequelas são causadas pelo mosquito Aedes aegypti, que transmite zika, dengue e chikungunya. Em 2015, o surto atingiu gestantes e o ponto mais afetado foi o cérebro dos bebês”, explica Raniele.
Ela destaca que o apoio financeiro do projeto vetado poderia significar uma melhora na qualidade de vida dessas crianças. “Hoje, por questões financeiras, estou tendo que fazer uma rifa. Se eu tivesse como garantir o necessário para ela, não precisaria disso. As mães vivem de campanhas, de doações. É um ciclo de angústia permanente.”
A epidemia de zika que atingiu o Brasil entre 2015 e 2017 resultou, segundo dados do Ministério da Saúde, em cinco mil crianças nascidas com microcefalia. No entanto, em 2025, apenas 1.580 permanecem vivas. A maioria morreu em decorrência de complicações associadas à síndrome.
“É muito difícil falar sobre isso. Elas falecem muito rápido. Ficam meses internadas. As sequelas afetam órgãos internos, pulmões, rins. Muitas passam um ano inteiro no hospital.”
Para Raniele, o PL vetado representa mais do que um benefício: trata-se de um instrumento de reparação e dignidade. “Muitas mães não conseguem trabalhar porque precisam cuidar dos filhos integralmente. Como é que a mãe vai sair de casa se a criança precisa de cuidados constantes?”
Além disso, muitas famílias são abandonadas pelos pais. “Há casos de suicídio entre mães que não suportam a sobrecarga. Parceiros que abandonaram mulheres após o nascimento da criança. O abandono é cruel.”
Raniele também destacou os custos elevados para manter os cuidados adequados. “Um suplemento alimentar custa cerca de R$ 80 e dura dois dias. Em um mês, isso passa de um salário mínimo. E tem fraldas, leites especiais, medicamentos. Muitas crianças têm alergias e não podem usar os insumos distribuídos pelos órgãos públicos.”
Ela ainda criticou a demora no atendimento pelo SUS: “Enquanto esperamos a regulação, muitas crianças se agravam. São submetidas a cirurgias recorrentes, sem alternativas. Não é luxo. É sobrevivência. Um valor adequado poderia evitar internações e mortes.”
Dados da ONG indicam que 80% das crianças com microcefalia têm escoliose e 99% já passaram por cirurgia de quadril.
“Se o presidente colocasse o veto em pauta para ser derrubado… Mas não recebemos apoio, não temos retorno do governo. É como se essas crianças não existissem.”
Nesta quinta-feira (10), uma audiência pública proposta pelo vereador Palhinha (União Brasil) está prevista para acontecer no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador. O objetivo é debater os 10 anos do surto de zika no Brasil e pressionar o Congresso a derrubar o veto presidencial ao projeto de lei.